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A cebola

Setembro 19, 2012

«É apenas uma fábula, mas é uma boa fábula, ouvia-a ainda em criança da boca da minha Matriona, que agora me serve de cozinheira. É assim: “Era uma vez uma campónia, muito má, muito mazinha, que finalmente morreu. E não deixou, depois de morta, qualquer virtude. Pegaram nela os diabos e atiraram-na para o lago do fogo. Vai daí, põe-se o anjo da guarda dela a pensar: de que virtude dela me posso lembrar para a dizer a Deus? Então lembrou-se e disse a Deus: esta mulher, na horta, arrancou uma cebola da terra e deu-a a uma pedinte. Responde-lhe Deus então: pega nesta cebola e estende-lha, que se agarre a ela, e tu puxa-a, e se conseguires puxá-la para fora do lago, então que vá para o paraíso; mas se a cebola se espedaçar que a mulher fique onde está. O anjo correu, estendeu-lhe a cebola: toma, agarra-te a ela, diz-lhe, vou puxar-te. E começou a puxá-la com cuidado e já quase a tirara toda para fora quando os outros pecadores do lago, ao verem-na a ser puxada, começaram todos a agarrar-se a ela para que fossem também puxados para fora. E como a campónia era mazinha, começou aos coices aos outros. É a mim que estão a puxar, a cebola é minha, não é vossa. Mal o disse, a cebola espedaçou-se. A campónia caiu no lago e ainda hoje lá está a arder. O anjo deitou a chorar e foi-se embora.” A fábula é esta, Aliocha, decorei-a porque esta campónia mazinha sou eu.»

(pp. 38-39, Vol. II)

Os Irmãos Karamázov [Brátia Karamázovi], Fiódor Dostoiévski (Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Ed. Presença)

4 comentários leave one →
  1. Setembro 20, 2012 09:42

    🙂
    É impossível ler um naco de prosa assim sem ver nele aquela qualidade que deve ser levada à leitura em voz alta para uma pequena audiência. Lembrei-me do Mário Viegas e de Helena Faria (Camaleão), com os quais cada palavra adquire vida própria, umas vezes pela voz que conta, outras pelo andar de um braço, o erguer de uma pálpebra.

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    • Setembro 20, 2012 17:25

      😉

      (não sou grande adepto de leituras em voz alta, mas isso são outros quinhentos 🙂 )

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  2. Setembro 20, 2012 18:28

    eu também não generalizo, mas há gente que é um espanto a fazê-lo (a Helena deixa miúdos e graúdos de boca aberta, naquela mímica que só uma situação ou pessoa muito envolventes sabem fazer acontecer);

    poesia dita em alta voz, só em andamento, com cada um e cada qual olhando na direcção que mais lhe aprouver, que aquilo dos diseurs é a pior invenção de salão depois da invenção do salão 🙂

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    • Setembro 20, 2012 23:43

      Concordo, que há excepções e o Mário Viegas era um deles.
      Os diseurs… foge, Marco! 🙂

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