“A Nave dos Loucos”
“A Europa anda atarantada. Como na “Viagem ao Centro da Terra” de Verne, a temperatura aumenta e a bússola está completamente enlouquecida.
Os ventos sopram fora de controle. De Norte a Sul, de Este a Oeste, as opiniões saltitam entre a compaixão e a repulsa, o medo e o remorso. Viktor Orbán, o húngaro musculado com lugar em Bruxelas, não tem dúvidas: “Estão a invadir-nos. Não estão apenas a bater à porta, estão a deitar a porta abaixo. A Hungria e toda a Europa estão em perigo”.
A estas palavras, Giovanni Drago, o herói de “O Deserto dos Tártaros”, esse maravilhoso romance de Dino Buzzati, teria decerto despertado da sua letargia, o inimigo finalmente chegado à Fortaleza. Algo de semelhante se poderia dizer para Aldo, o jovem aristocrata de Orsenna que parte para o mar das Sirtes, destacado para a fronteira que separa Orsenna do Farguestão, estados rivais marcados por uma guerra surda de três séculos que ele irá de novo despertar, segundo se conta nesse livro parente da obra de Buzzati, “A Costa das Sirtes” de Julien Gracq. E poder-se-ia acrescentar Ivo Andrić, o Nobel bósnio que nos faz regressar até ao século XVI, aos Balcãs, aí onde o Grão-Vizir Mehmet-Paxá decide erigir uma ponte sobre o rio Drina que liga até hoje as duas margens, ponto de partida do épico do mesmo nome (“A Ponte Sobre o Drina”). O que não falta é literatura!
Naturalmente, não será isso que resolve – ou porventura ajuda – o drama dos refugiados de agora. Mas se a História se repete – e disse-se que a segunda vez como farsa –, não há como não vislumbrar ironia histórica no sentido da actual travessia do Mediterrâneo por milhares de pessoas em fuga, e isto apesar das mortes trágicas.
Encurralada entre os seus princípios universalistas, laicos e democráticos e a realidade do confronto com valores inegavelmente retrógrados (e quem disser o contrário que atire a primeira pedra), vacilando entre o dever de acolhimento, o mea-culpa e a obrigação de defesa de padrões civilizacionais até há pouco dados por adquiridos, a Europa mergulha em apneia na História que, no mínimo precipitadamente, muitos tinham ousado dar por terminada.
Lê-se em “A Ponte Sobre o Drina”: “Um homem de espírito puro e de olhos abertos que então vivesse poderia testemunhar como é que se dá esse milagre e como uma sociedade inteira se podia transformar num único dia. Em poucos minutos a tradição secular da cidade foi devastada.”
Como não me canso de dizer, repetindo o que muitos disseram antes de mim, está tudo na literatura.” – Ana Cristina Leonardo