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Comecem pelo não tornar impossível

Fevereiro 14, 2017
"Intérieur d'un Comité révolutionnaire sous la Terreur", Alexandre-Évariste Fragonard

“Intérieur d’un Comité révolutionnaire sous la Terreur – 1793-94”, Alexandre-Évariste Fragonard

«- Gauvin, baixa à terra. Queremos realizar o possível.
– Comecem pelo não tornar impossível.
– O possível realiza-se sempre.
– Nem sempre. Se maltratarem a utopia, matá-la-ão. Nada há mais indefeso do que um ovo.
– Cumpre no entanto agarrar na utopia, impor-lhe o jugo do real e emoldurá-la no facto. A ideia abstracta deve transformar-se em ideia concreta; o que perde em beleza recupera em utilidade; é menor, mas melhor. Cumpre que o direito entre na lei; e, quando o direito se faz lei, é absoluto. É isso o que eu chamo o possível.
– O possível é mais do que isso.
– Eis-te de novo a sonhar.
– O possível é uma ave misteriosa a pairar sempre por cima do homem.
– É preciso apanhá-la.
– Viva.
Gauvin continuou:
– A minha ideia é esta: Sempre para a frente. Se Deus quisesse que o homem recuasse, ter-lhe-ia posto um olho na parte posterior da cabeça. Olhemos sempre para o lado da aurora, do desabrochar, do nascimento. O que cai anima o que sobe. O estalar da velha árvore é uma chamada à árvore nova. Cada século fará a sua obra, hoje cívica, amanhã humana. Hoje a questão do direito, amanhã a questão do salário. Salário e direito, no fundo, são a mesma palavra. O homem não vive para deixar de ser pago; Deus dando a vida contrai uma dívida; o direito é o salário inato; o salário é o direito adquirido.
Cimourdain murmurou:
– Andas com rapidez.
– É talvez porque vou um pouco apressado – disse Gauvin sorrindo.
E continuou:
– Ó mestre, eis a diferença entre as nossas duas utopias. O senhor quer a caserna obrigatória, eu quero a escola. Fantasia o homem soldado, eu fantasio o homem cidadão. Deseja-o terrível, eu quero-o pensativo. Funda uma república de gládios, eu no fundo…
Interrompeu-se:
– Fundaria uma república de espíritos.
Cimourdain olhou para as lajes da masmorra e disse:
– E até lá o que queres?
– O que existe.
– Absolves o momento presente?
– Absolvo.
– Porquê?
– Porque é uma tempestade. Uma tempestade sabe sempre o que faz. Por cada carvalho fulminado, quantas florestas saneadas!. A civilização tinha uma peste, este vendaval livra-a dela. Não faz talvez boa escolha. E poderia fazer o contrário? Está incumbida de varrer com tanta força! Diante do horror do miasma, compreendo a fúria do vento.
Gauvin continuou:
– E por outro lado que me importa a tempestade, se eu tenho a bússola, e que me importam os acontecimentos, se tenho a minha consciência!
E acrescentou com a voz grave que também é a voz voz solene:
– Há alguém a quem devemos sempre deixar obrar.
– Quem? – perguntou Cimourdain.
Gauvin ergueu o dedo acima da cabeça. Cimourdain seguiu com os olhos a direcção daquele dedo levantado e, através da abóbada da masmorra, pareceu-lhe ver o céu estrelado.
Calaram-se outra vez.
Cimourdain continuou:
– Sociedade maior que a natureza. Digo-te que não é possível, é sonho.
– É esse o alvo. A não ser assim de que servia a sociedade? Conservem-se na natureza. Sejam selvagens. O Taiti é um paraíso. Com a diferença que nesse paraíso não se pensa. Mais vale ainda um inferno inteligente do que um paraíso estúpido. Mas não, nada de inferno. Sejamos a sociedade humana. Maior que a natureza. Sim, se nada acrescentam à natureza, para que sair dela? Então contentem-se com o trabalho como a formiga e com o mel como a abelha. Fiquem o animal trabalhador, em vez de serem a inteligência rainha. Se acrescentarem alguma coisa à natureza serão necessariamente maiores do que ela; acrescentar é aumentar é engrandecer. Quero tudo quanto falta às colmeias, tudo quanto falta aos formigueiros, os monumentos, as artes, a poesia, os génios. Carregar fardos eternos não é a lei do homem. Não, não, não, basta de párias, basta de escravos, basta de forçados, basta de condenados. Quero que cada um dos atributos do homem seja um símbolo de civilização e um modelo de progresso; quero a liberdade perante o espírito, a igualdade perante o coração, a fraternidade perante a alma. Não, basta de jugo. O homem foi feito, não para arrastar cadeias, mas para abrir asas. Não quero o homem réptil. Quero a transfiguração da larva em lepidóptero; quero que o verme se transforme numa flor animada e voe. Quero…
Parou. O olhar tornou-se-lhe radiante.
Moviam-se-lhe os lábios. Deixou de falar.»

Noventa e Três, Victor Hugo (Trad. Maximiano Lemos Júnior, Ed. Portugália, pp. 344-346)

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