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O diálogo da espada e do machado

Fevereiro 5, 2017
"Morte da princesa Lamballe", Léon Maxime Faivre, 1908

“Morte de Maria Luísa, Princesa de Lamballe”, Léon Maxime Faivre, 1908

«- Será uma data sangrenta este ano de 93 em que estamos.
– Toma cautela! – exclamou Cimourdain. – Existem deveres terríveis. Não acuses o que não é acusável. Desde quando é a doença culpa do médico? Sim, o que caracteriza este ano enorme, é ser sem compaixão. Porquê? porque é o grande ano revolucionário. Este ano em que estamos incarna a revolução. A revolução tem um inimigo, o velho mundo, e é sem compaixão para com ele. A revolução extirpa a realeza no rei, a aristocracia no nobre, o despotismo no soldado, a superstição no padre, a barbaria no juiz, numa palavra, tudo quanto é tirania, em tudo quanto é o tirano. A operação é assustadora, a revolução executa-a com pulso firme. Quanto à quantidade de carne sã que se sacrifica, pergunta a Boerhave o que pensa a esse respeito. Qual é o tumor que, ao extirpar-se, não acarreta perda de sangue? Qual é o incêndio que, para extinguir-se, não exige o quinhão do fogo? Estas necessidades terríveis são a própria condição do resultado. Um cirurgião parece-se com um carniceiro, um médico pode fazer o ofício de carrasco. A revolução dedica-se à sua obra fatal. Mutila, mas salva. Pois quê! Pedes-lhe perdão para o vírus! Queres que ela seja clemente para o que é venenoso! Ela não escuta! Tem empolgado o passado, acabá-lo-á. Faz à civilização uma incisão profunda donde sairá a saúde do género humano. Sofres? Certamente. Quanto tempo durará isto? O tempo da operação. Depois viverás. A revolução amputa o mundo. Daí esta hemorragia, 93.
– O cirurgião está sossegado – disse Gauvin – e os homens que vejo são violentos.
– A revolução – replicou Cimourdain – quer ser auxiliada por homens cruéis. Rejeita toda a mão que treme. Só tem fé nos inexoráveis. Danton é o terrível, Robespierre o inflexível, Saint-Just o irredutível, Marat o implacável. Toma sentido, Gauvin. Esses nomes são necessários. Valem para nós exércitos. Aterrarão a Europa.
– E talvez também o futuro – disse Gauvin.
Parou e redarguiu:
– De resto, meu mestre, está em erro, eu não acuso ninguém. Segundo a minha opinião, o verdadeiro ponto de vista da revolução é a irresponsabilidade. Ninguém é inocente, ninguém é culpado. Luís XVI é um carneiro lançado entre os leões. Quer fugir, quer salvar-se, procura defender-se; morderia se pudesse. Mas não é leão quem quer. A sua veleidade passa por crime. O carneiro encolerizado mostra os dentes. Ah! traidor, dizem os leões. E devoram-no. Feito isto batem-se entre si.
– O carneiro é um animal.
– E o que são os leões?
Esta réplica fez pensar Cimourdain. Levantou a cabeça e disse:
– Esses leões são consciências. Esses leões são ideias. Esses leões são princípios.
– Produzem o terror.
– Um dia a revolução será a justificação do terror.
– Receie que o terror não seja a calúnia da revolução.
E Gauvin prosseguiu:
– Liberdade, Igualdade, Fraternidade são dogmas de paz e harmonia. Porque dar-lhes um aspecto assustador? Que queremos nós? Conquistar os povos para a república universal. Pois bem, não lhes causemos medo. Para quê a intimidação? Os povos assim como as aves não se atraem com o espantalho. Não se pode fazer mal para se fazer bem. Não se destrói o trono para se deixar em pé o cadafalso. Morte aos réis e vida às nações. Abatamos as coroas, e poupemos as cabeças. A revolução é a concórdia e não o terror. As ideias doces são mal servidas pelos homens inclementes. Amnistia é para mim a mais bela palavra da língua humana. Eu não quero derramar sangue senão arriscando o meu. De resto só sei combater e nada mais sou do que um soldado. Mas se se não pode perdoar de nada vale vencer. Sejamos durante a batalha os inimigos dos nossos inimigos e depois da vitória seus irmãos.
– Toma cautela! – repetiu Cimourdain pela terceira vez. – Gauvin, és para mim mais do que um filho, toma cautela!
E acrescentou pensativo:
– Em tempos como os nossos, a compaixão pode ser uma das formas de traição.
Ouvindo falar esses dois homens, julgar-se-ia ouvir o diálogo da espada e do machado.»

Noventa e Três, Victor Hugo (Trad. Maximiano Lemos Júnior, Ed. Portugália, pp. 211-213)

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