Conta-gotas
Em tempos que já lá vão, eu era um requisitador nato da biblioteca da terra (a palavra requisitador não existe, mas gosto mais do que requisitante). Três livros de cada vez era o máximo permitido. Isto alimentava-me durante uma semana ou semana e meia dependendo do número de páginas (ou dos livros, o “Moderato Cantabile“, talvez o meu favorito da M. Duras, é pequenino, mas demorei vários dias. Foi uma verdadeira prova de degustação). Para que a leitura não se tornasse concêntrica, impus-me a regra de ler um autor português/lusófono por cada três. Foi assim que descobri o Mário de Carvalho, Mia Couto, Maria Judite de Carvalho, Pepetela, Rui Zink (ainda ele não era a figura pública que é hoje. O livro era o “Homens-Aranhas”), Lobo Antunes, Manuel Tiago, Cardoso Pires, Mário de Andrade (“Macunaíma”, com este livro ia dando um nó ao cérebro), Carlos Vale Ferraz (o “Soldadó” é uma risota. Lembro-me várias vezes desta personagem. Hoje o Soldadó seria ministro), Sousa Jamba (“Patriotas”, editado pela Cotovia, acho. Quem leu isto? Aqui foi a temática, Angola, que me despertou o interesse), Manuel Jorge Marmelo, Germano Almeida e vou parar que já me estou a sentir um Gabriel Alves a debitar nomes. Estes foram alguns que li muito depois de recorrer à estante lá de casa, Eça, Camilo, Florbela Espanca, Stevenson, Poe, Chamisso… (sabia lá quem eram estes istrangeiros, pegava num, começava a ler e pronto). Já tinha falado disto aquie aqui.
Isto tudo para dizer o quê? Que estava prestes a terminar a leitura do terceiro livro e já pensava nos próximos que iria requisitar quando me lembrei, “ó sua cabeça de abóbora, ainda não leste o Saramago”. O “Memorial do Convento” parecia-me adequado para começar. Passados uns dias, termino a leitura e já tinha na cabeça, mais ou menos, o que iria trazer no dia seguinte. Mas entretanto é anunciado o Nobel. O Saramago ganhou! Alguma coisa se passou, porque não consegui sequer me aproximar das estantes da literatura portuguesa. Pensei, “aquilo amanhã vai ser uma correria que nem um supermercado com 50% de desconto” (estás a ver, Peixoto, não é preciso colocar telemóveis no século XIX). Não sei, mas durante uns meses não consegui pegar num livro do Saramago. Naquela arrogância de jovem leitor, não queria ser comparado às tias que só iam ler o nobelizado, porque era bem andar com um Saramago debaixo do braço.
Agora que puxei pela memória (calma, não se preocupem que não me magoei), estou a lembrar-me de mais alguns. Um autor espanhol, Arturo Pérez-Reverte, que quando o li estava muito longe de se tornar a vedeta que é hoje em dia. “Território Comanche”, um livrinho sobre a guerra na ex-Jugoslávia. Também estava na moda o Douglas Coupland. O “Geração X” é uma referência, mas o meu preferido continua a ser “A vida depois de Deus“. Aqui a literatura já nos preparava para o que viria aí: os macjobs ou em linguagem actual, a precariedade do mercado de trabalho. A malta achava fixe viajar, trabalhava-se uns meses para ganhar uns cobres e mudava-se de país constantemente. Pois, bonito serviço, sim senhor… Por falar em trabalho, um outro, “O curral das bestas” de Magnus Mills, por todos os santinhos, leiam isto, é divertidíssimo. Se não ficarem satisfeitos devolveremos o vosso dinheiro. Um outro autor da moda era o Bret Easton Ellis, li o “Menos que Zero” e o “Psicopata Americano”. Aqui aprendi que as modas são uma merda. Pela primeira vez saltei um capítulo inteiro, quando o gajo se põe a descrever a discografia completa dos Genesis. Arre! a paciência tem limites! Só quando li o “Moby Dick” é que percebi que ele estava a copiar a mesma técnica. O Melville também tem capítulos completos que parecem retirados de um manual de biologia marinha. Bret, dedica-te à pesca, pá. Outro livrinho que gostei muito, “Os sonhos de Einstein”, diria que é uma espécie de “As Cidades Invisíveis“, mas à volta do Tempo. Muito bom.
Ah, por esta altura, o meu autor de eleição era o Hemingway, mas entretanto li o Céline, “Viagem ao fim da noite”. Que pedrada! No documentário sobre o Manuel António Pina, este diz, com muita graça, que os drogados em vez de se injectarem, se lessem um livro de astronomia ou ciência iam sentir uma pedrada muito maior. Mas também vicia. Pois foi isso que senti com o livro do Céline.
Também me estou a lembrar de um outro… pára, pá, pára! Eia, agora é que reparei, isto parece um texto do Jackson Pollock, um verdadeiro name dripping! O Vergílio Ferreira tinha uma conta-corrente, eu tenho um conta-gotas. Quando comecei a escrever isto estava a pensar no post anterior sobre a valterite, mas o raio das palavras nunca me obedecem.
[imagem: “Ghost Dog – O Método do Samurai” (1999), Real. Jim Jarmusch]
«[…] o “Moderato Cantabile“, talvez o meu favorito da M. Duras, é pequenino, mas demorei vários dias. Foi uma verdadeira prova de degustação»
Não é o meu favorito da Duras (talvez seja «A Dor»), mas, sim, foi uma verdadeira prova de degustação. Levo-te comigo.
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Andei muito tempo à procura desse livro da Duras, acho que andava esgotado, não sei. Agora que já tenho na estante, ainda não o li 🙂
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Confia em mim: lê-o. Curiosamente, também o li através da biblioteca da minha terra; e, mais tarde, comprei-o.
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Confio, claro. É um livro que quero muito ler.
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🙂
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ainda não li Saramago (é, pois é……..). mas a razão tem tanto de duradoura como de parva: “sou do” ALA, e sinto isto não com essa doce arrogância de jovem leitor, mas como uma burra velha empancada num atoleiro de orgulho.
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Se vamos falar dos escritores que nunca li, ui, nunca mais saímos daqui 🙂
Um dia ‘bora lá ler, pelo menos, o Memorial. Garanto que vale a pena.
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Gosto muito da imagem escolhida
A minha Marguerite é a minha Marguerite ponto
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É do filme do Jarmusch, “Ghost Dog”.
Está bem, pronto 🙂
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desses apontados li o mellvile há muito tempo. de duras: “O amante” e gostei.
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Se gostar de humor negro inglês (redundância?), recomendo “O curral das bestas” de Magnus Mills. Isto se ainda encontrar nas livrarias.
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