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“Na biblioteca, com rosto desconhecido”

Setembro 14, 2011

«Um dia (quem sabe se morta) teria saudades daquelas horas tranquilas, passadas na biblioteca. Que curiosa humanidade ali vinha! Investigadores, circunspectos, que o pessoal cumprimentava reverente, estudantes que se namoravam, olhos nos olhos, por cima dos compêndios, rapazinhos de calção curto à procura de aventuras desmedidas, ou do manual que ensinava a melhor maneira de tratar pombos, professorinhas, ávidas de nomeação no Diário do Governo, soldados, polícias… quanta gente!
A sala dava sobre o claustro e o pátio – canteirinhos de buxo, cortados à garçonne, no meio o chafariz de carrancas, dum granito já lodoso e verdinhento. No parapeito das janelas, abertas à trade de verão, os pombos arrulhavam, cantavam-se, namoravam-se, beijavam-se, descarados, longamente a intervalos. Mas na sala, de paredes recobertas por uma sabedoria antiga, de estranha nomenclatura, impressa em ouro velho e carmesim, nas lombadas grossas das encadernações, havia um peso de silêncio, de concentração atenta, e de paz, onde sabia bem mergulhar. E, no entanto, nunca antes da presença dela, se tinha apercebido de que alguém pudesse frequentar uma biblioteca, como outros frequentavam a igreja, apenas para sentir a santidade do local.
A primeira vez que a tinha visto de costas, uma magreza envolta no vestido de sedinha estampada, uma écharpe pelos ombros, os pés nus metidos nuns sapatos cambados, pensara num fantasma mórbido e romântico, pois distintamente a ouvira requisitar “A Freira no Subterrâneo”, de Camilo. Afinal, era uma mulher da vida. E chocara-a a certeza, quando lhe olhara o rosto, amargo, ensombrado por uma franja (Provocante?) que a tornava dum patético, adolescente, e quadrava mal com o seu corpo gasto. Vinha todos os dias, ao fim da tarde. E a coberto de Camilo, confundia-se com os leitores, vulgares. Mas na verdade pouco lia. Isolada, na mesa do fundo, depois de percorridas duas ou três folhas, ficava-se absorta, um sorriso de beatitude nos lábios, soberbamente alheia, a écharpe descaída, indiferente ao arrulhar insistente dos pombos, que continuavam o seu jogo. Não reparava no que se passava à sua volta.
Não a interessavam nem as roídas encadernações de estranhos títulos – Le Traité des Drogues, Synopsi Univers Pharmacoop de Lemery –, nem as trancinhas miúdas da cabeça que lhe ficava em frente, nem o bigode, sedutor e cinematográfico, do empregado. Recolhida, como sob uma imensa nave sombria, purificava-se apenas da vida gasta nos actos maquinais dum amor sórdido e mal remunerado. Logo que voltasse às ruas donde tinha vindo, não poderia evitar a insistência grosseira dos soldados, a graçola obscena dum bêbedo, os convites. Mas ali, no silêncio da biblioteca, a sua dignidade humana refazia-se, inteira. E diante da moldura dourada e barroca do imenso retrato daquele rei, já sem púrpuras, já constitucional, como se estivesse diante dum sacrário, importunada pelo arrulho dos pombos, insistente, longo, mugido, como um cio avolumado e inadiável – em que estaria a pensar? Nunca viria a sabê-lo e não podia esquecê-la. Nem a ela nem a nenhum dos outros. Aqueles ourives, leitor assíduo e atento que usava óculos na ponta do nariz como um relojoeiro, o cigano, porte altivo de homem livre, impressionante no seu luto de camisa preta, apesar das calças rotas, que lhe punham a nu a carne morena e azeitona. Aquelas paredes, os azulejos conventuais, o pátio e o claustro, aquela paz ficariam para sempre com ela. E o arrulho, mugido, dos pombos? Também. Também se lembraria dele.»

Na biblioteca, com rosto desconhecido, Luísa Dacosta in “Corpo Recusado” (Ed. Figueirinhas)

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