“Abril despedaçado”
«Tinha frio nos pés e, sempre que mexia um pouco as pernas dormentes, ouvia as pedras estalar lamentosamente sob as solas dos sapatos. Na verdade, o lamento estava dentro dele. Nunca lhe acontecera ficar tanto tempo imóvel à espreita atrás do talude, à beira da estrada.
O dia declinava. Com um sentimento de temor, ou antes de alarme, baixou a arma apontada. Em breve a noite iria começar a cair e, na penumbra, deixaria de conseguir ver o gatilho da arma. “Ele vai passar de certeza antes que a noite venha impedir-te de o teres na linha de mira”, dissera-lhe o pai. “Tem paciência e sabe esperar.” Lentamente, o cano da espingarda passou dos flocos de neve ainda mal derretida às romãzeiras selvagens que salpicavam o matagal dos sois lados da estrada. Pela centésima vez, pensou que era um dia único na sua vida. Depois, o cano descreveu o movimento inverso e regressou ao ponto de partida. Aquilo a que no íntimo chamara um dia único reduzia-se agora àqueles flocos de neve e àquelas romãzeiras selvagens que pareciam estar ali à espera desde o meio da tarde para ver o que ele faria.
Não tarda muito, vai ser noite, pensou, e não vou poder fazer pontaria. Desejava que o crepúsculo chegasse depressa, que a noite se lhe seguisse imediatamente e que ele pudesse fugir a correr daquela maldita emboscada. Mas o dia arrastava-se, como que satisfeito por retê-lo à laia de refém, e continuava a ter de esperar. Era a segunda vez na vida que se punha à espreita para obter vingança, de modo que esta emboscada mais não era do que o prolongamento da primeira.»
(…)
Abril despedaçado [Prilli i Thyer], Ismaïl Kadaré (Tradução do francês de Magda Bigotte de Figueiredo, Ed. Dom Quixote)
[Uma escolha de Sandra Costa]