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“O Deus da Primavera”

Julho 5, 2011

«Montmartre
Junho de 1848

Vestido, pronto, Théodore Géricault esperava num estado de pavor a chegada do tio. Sabia que em breve a carruagem preta reluzente apareceria ao fundo da alameda de castanheiros, sob toda a magnificência verde-escura e sob os rebentos brancos como cera.
Era como sempre, como uma cena de uma peça que tivessem encenado por toda a eternidade, uma e outra vez. O cocheiro que conduzia as três parelhas num passo decoroso; depois, o tio a descer da carruagem, com modos de patrício, imperiais, estendendo a mão para ajudar a encantadora jovem esposa.
Géricault mantinha-se perto da entrada e saudava o patrono e benfeitor com um sorriso manhoso, de sicofanta, incapaz de olhar a tia olhos nos olhos e, no entanto, estremecendo de desejo de beijar a mão enluvada.
Como sempre, o jantar seria interminável, tenso de tanto desejo reprimido.
Géricault conduziu-os até à sala de jantar e tomaram os seus lugares à mesa de carvalho polido: Charles Carruel no lugar de honra, à cabeceira, ladeado pela mulher e pelo sobrinho. Uma criada acendeu os candelabros e fechou as portas francesas que davam para o terraço; abatera-se uma névoa gelada e o céu do crepúsculo estava a escurecer rapidamente devido às nuvens que o encobriam.
Géricault observou o tio a servir o vinho a Alexandrine e a escolher os melhores pedaços de comida para o prato dela. Como se afadigava nisso… Ela submetia-se às atenções do marido como uma perfeita noiva infantil, contrapondo da forma mais enternecedora que, na verdade, não conseguia comer nem mais um bocadinho. Uma visão que o fazia cerrar os dentes. Sentada numa cadeira de espaldar direito, Alexandrine pousou as mãos no colo, modesta, numa pose de esposa, com uma expressão de recatada santidade; nem manteiga se derretia na boca – naquela boca expectante, ansiosa. Por vezes, Géricault sentia-se diminuído pelo equilíbrio e pela sofisticação daquela mulher.»
(…)
“O Deus da Primavera” [The God of Spring], Arabella Edge (Tradução Mário Matos, Ed. Quidnovi)

[Uma escolha de Sandra Costa]

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