Bill Evans na “Movida” Madrilena
Por Abdul Moimême
«As razões que me levam a escrever sobre este disco são de duas ordens. A primeira tem a ver com a qualidade intrínseca da música aqui interpretada e dos músicos excepcionais que a tocam. A segunda é de teor emotivo e tem a ver com o facto de ter assistido a uma das duas noites em que o trio de Bill Evans veio tocar ao Balboa Jazz nesse Inverno de 1979. Guardo uma memória particularmente viva dessa noite, dado tratar-se de um concerto memorável, cujo impacto foi acentuado pela exiguidade do espaço do clube e por ter-me sido possível ficar sentado literalmente ao lado do pianista. Quando Bill Evans se sentou ao piano pediu-me gentilmente que me chegasse para o lado, para ele estar mais à vontade ao piano, que tinha sido colocado mesmo no meio do clube, permitindo ao público uma proximidade invulgarmente intimista com os músicos. O facto deste concerto ter tido na altura o impacto que teve sobre o público espanhol, permitindo o seu posterior lançamento em vinil, tem a ver com outras circunstâncias que passo a relatar.
Na era franquista existiam apenas dois clubes de jazz em Madrid, o Balboa Jazz e o Whisky Jazz. O clima cultural desta era, e o próprio gosto castelhano, não permitiam mais espaços para divulgação de uma música que a sociedade espanhola, em geral, olhava com tanta desconfiança como incompreensão.
O mesmo se aplicava em grande parte ao próprio Flamenco, restrito aos tablados, e ao Rock, ao qual era permitido pouco mais de um evento por ano. No entanto, pela altura da proclamação da nova democracia espanhola, em 1978, o movimento “underground”, abriu finalmente diversos recintos novos, dedicados em parte à interpretação do jazz. Foi no ambiente da “La Transicion”, a mudança de regime, que espaços como La Mandrágora, El Bombardino, o Café Barbieri, e o Café Manuela, abriram as suas portas a uma nova vaga de artistas e ao espírito de abertura musical que predominava nesse momento. Foi nestes sítios onde me deparei pela primeira vez com Peter Bastiaan, músico e artista hoje em dia no activo, na cena Lisboeta. Assim, em termos históricos, a vinda de Bill Evans a Madrid coincidiu com um momento social e político particularmente relevante na vida dos nossos vizinhos. Estes eventos também foram consequência directa do início de um movimento cultural que haveria de abalar a Espanha até ao momento presente: La Movida!
A verdadeira revolução cultural que fez estremecer a maior parte dos valores do antigamente. A título de exemplo, pela altura do concerto de Bill Evans, um mero funcionário da companhia de telefones espanhola rescrevia o guião para a sua primeira longa-metragem comercial.
Tratava-se, nada mais, nada menos, de Pedro Almodóvar e o filme em questão era “Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del Montón”, onde entre outras peripécias as eleições gerais, recentemente efectuadas, se transfiguram nas “erecciones generales”, e onde o sado-masoquismo, o sub-mundo travesti, a sublevação da cultura Pop e a realidade suburbana coabitavam conflituosamente com os valores e a violência da autoridade franquista. Eram as noite loucas de recintos de música ao vivo e dança como o Rock-Ola, ou o Marquee. O ano de 1979, ano da actuação do trio de Bill Evans, foi marcado por uma actividade jazzista muito fora do normal, que vinha ganhando consistência desde a mudança politica do ano anterior. O jazz vinha assim ganhando terreno na cena cultural espanhola a grande velocidade. Se em 1977 a programação semanal dos dois clubes principais de Madrid praticamente se restringia à ONU Dixieland Band, no Balboa Jazz, às segundas, e a Canal Street Jazz Band, no Whisky Jazz, à terça, já em 1978 a cidade abria as suas salas a grupos como os Henry Cow, e a praça de toros de Ventas enchia as suas bancadas com os concertos dos Weather Report, o dueto de Chick Corea / Herbie Hancock ou uma programação que combinava Jeff Beck / Stanley Clarke e Camarón de la Isla na mesma noite!
Foi neste frenesim cultural que, num espaço de tempo inferior a um mês, Luís Andrés Bourbon, o proprietário do Balboa Jazz contratou dois grupos de destaque para actuar no seu clube: o quinteto de Stan Getz e logo a seguir o trio de Bill Evans. No primeiro evento a sala encheu de tal forma que Bourbon se viu obrigado a proporcionar uma actuação extra no Domingo, dia do Senhor, há pouco mais de dois anos impensável para nele se tocar música herética.
Faziam parte deste momento de transição um casal argentino, Horácio (teclados) e Connie (voz) que actuavam frequentemente nos dois clubes principais com o baterista Carlos Carli. Foi este pianista que gravou as duas noites em que o trio de Bill Evans tocou no Balboa Jazz, no seu gravador de bobines, nos dias 11 e 12 de Dezembro de 1979 (embora nas liner notes se indique incorrectamente que foram três noites.) Como o conhecia pedi-lhe que me fizesse uma cópia para cassette, ao que o pianista acedeu sem hesitação. Infelizmente, depois de lhe ter entregue duas ou três cassettes de crómio (o Rolls Royce das cassettes de então) quis o destino que não voltasse a encontrá-lo no caos da noite Madrilena. Algum tempo depois perdi toda a esperança de ter aqueles momentos registados para futuras e, certamente proveitosas e saudosistas audições. Não sabendo que o disco tinha sido lançado em vinil, anos mais tarde, qual o meu espanto quando, há poucos dias, me deparei com este título na banca da Trem Azul, no recente festival da Jazz.pt!
Não quis acreditar no que lia e pensei de imediato tratar-se de algum obscuro Balboa Jazz Club de algures no midwest dos Estados Unidos, ou coisa parecida. Tudo menos o de Madrid, que de resto apenas se apelidava de Balboa Jazz. Não podia estar mais enganado!
Quanto à música que ouvi, lembro-me de um concerto fora de série. Embora Bill Evans estivesse muito perto do final da sua vida, a sua música tinha atingido um ponto de maturidade particularmente alto, e este trio formado por Marc Johnson no contrabaixo e Joe LaBarbera na bateria, conseguiu alcançar o grau de empatia patente nas melhores formações do pianista. Sobretudo, o que se destacou foi a imensa liberdade que Bill Evans dava às interpretações do seu repertório mais clássico.
A primeira noite foi caracterizada por temas mais curtos e um andamento mais concreto, infelizmente pouco beneficiada pela qualidade da gravação, que chega a distorcer o som do piano. Mesmo assim, a música propriamente dita consegue transcender largamente qualquer limitação técnica de captação de som, justificando inúmeras audições.
No concerto da segunda noite, os temas prolongaram-se mais e os aspectos marcadamente líricos do estilo de Bill Evans transpareceram com uma força verdadeiramente arrebatadora. Aqui as bobines de Horácio fizeram justiça à qualidade superlativa da música, e embora não se trate de um som propriamente “Hi-Fi” o resultado é mais do que satisfatório.
Também foi a noite à qual tive a sorte de presenciar. Durante o intervalo, José Carlos, o meu amigo de borgas noctívagas e eu, subimos as escadas íngremes que levavam à rua, para apanhar ár. Embora se vivesse supostamente em pleno estado democrático, não era por acaso que à porta do Balboa Jazz estavam estacionados dois “Guardia Civil” (mais popularmente apelidados de “grises”, como quem descreve um estado de alma cinzento-escuro), armados de cima a baixo neste caso uma presença desnecessária, um eco bizarro do passado recente. O clube situava-se em pleno Barrio de Salamanca, o bairro chique da cidade, e quartel-general da Fuerza Nueva, o partido de ultra direita de Blas Piñar. Bill Evans também estava lá fora, a fumar o seu cigarro, e para além da presença dos “grises”, estava sozinho. Conversamos um pouco e embora na altura conhecesse melhor o trabalho que o músico tinha desenvolvido no seio do sexteto de Miles Davis, Bill Evans falou-me simpaticamente da sua vasta e brilhante carreira, que só mais tarde vim a conhecer devidamente.
Depois de Madrid o trio ainda passou por Roma, e pela Alemanha, tocando no Ronnie Scott’s em Londres, em Agosto do ano seguinte. Nove meses depois da sua actuação no Balboa Jazz, Bill Evans morria em Nova Iorque, vítima de diversos problemas de saúde, derivados do abuso da droga. O clube não durou tanto, fechando as suas portas ao jazz pouco depois da actuação.
Os dois concertos foram inicialmente editados em cinco volumes pela editora Ivory. Nessa colecção incluem-se ainda interpretações de temas como Autumn Leaves, Polka Dots and Moonbeams, Quiet Now, Who Can I Turn to?, Someone in Love, entre outros, que não constam da recente edição da Gambit Records. Se para o adepto comum de Bill Evans o CD é um registo muito mais do que satisfatório, os verdadeiros fanáticos terão que fazer uma pesquisa mais profunda e encontrar esses 5 raros volumes em formato de LP. No caso de Bill Evans vale sempre a pena procurar.»
Texto originalmente publicado da revista Jazz.pt n.º 21 (Nov/Dez 2008) e recentemente na Alice n.º 5