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“Molloy”

Janeiro 20, 2011

«Estou no quarto da minha progenitora. Sou eu quem cá vive agora. Não sei como cá cheguei. Numa ambulância talvez, num veículo qualquer certamente. Ajudaram-me pois. Sozinho, não teria chegado. Esse fulano que vem cá todas as semanas, talvez seja graças a ele que eu estou aqui. Ele diz que não. Dá-me um dinheirito e leva as folhas. Tantas folhas, tantas. Sim senhor, trabalho, um pouco como antigamente, simplesmente agora já não sei trabalhar. O que não tem importância, suponho. Quanto a mim, gostaria agora de falar das coisas que me restam, de fazer as minhas despedidas, de acabar de morrer. Eles não querem. Sim, são muitos, parece. Mas é sempre o mesmo que cá vem. Fará isso mais tarde, diz ele. Muito bem. Já não tenho muita vontade, como vêem. Quando vem buscar as folhas, torna a trazer as da semana anterior. Vêm marcadas com sinais que não entendo. Aliás, nem as releio. Quando não faço nada, não me dá nada, e ralha comigo. E no entanto, eu não trabalho por dinheiro. Por que trabalho, então? Nem sei. Não sei grande coisa, com franqueza. A morte da minha mãe, por exemplo. Estaria ela já morta quando cheguei? Ou só terá morrido mais tarde? Por morta quero dizer pronta para enterrar. Não sei. Talvez nem a tenham ainda enterrado. Seja como for, sou eu quem tem agora o quarto dela. Deito-me na cama dela. Faço no penico dela. Tomei o lugar dela. Só me falta um filho. Devo ter um algures, quem sabe? Mas não creio. Seria agora velho, quase tanto como eu. Era uma rica sopeira. Não o verdadeiro amor. O verdadeiro amor era com outra. Já vão ver. Esqueci-lhe outra vez do nome. Tenho às vezes a impressão que cheguei a conhecer o meu filho, que me ocupei dele. Depois digo para comigo que isso era impossível. Impossível eu ter podido ocupar-me de alguém. Esqueci-me também da ortografia e de metade das palavras. O que, parece, não tem grande importância. Isso queria eu. É um tipo tão bizarro, este que me vem cá ver. Vem aos domingos, suponho, não falha um. Aos outros dias não está livre. Foi ele quem me disse que começara mal, que era preciso começar de outra maneira. Isso queria eu. Comecei no princípio, vejam lá, como um bandalho. Ora aí têm o meu princípio. Mesmo assim, se bem compreendi, vão guardá-lo. O trabalhão que me deu. Aqui o têm. Custou-me muito. Era o princípio, não sei se compreendem. Ao passo que, agora, é quase o fim. Será melhor, o que faço agora? Não sei. O problema não está aí. Aqui têm o meu começo. Algum significado deve ter, visto que o guardam. Aqui o têm.»
(…)
Molloy, Samuel Beckett (Tradução de Rui Guedes da Silva, Ed.  Presença)

[Uma escolha de Luís Filipe Nunes]

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