“A vida – Modo de usar”
«Sim, a coisa poderia começar assim, aqui, deste modo, de uma maneira um pouco pesada e lenta, neste lugar neutro que é de todos e de ninguém, onde as pessoas se cruzam quase sem se ver, onde a vida do prédio ecoa, longínqua e regular. Do que se passa por detrás das pesadas portas dos apartamentos apenas captamos quase sempre esses ecos estilhaçados, esses restos, esses destroços, esses esboços, esses estímulos, esses incidentes ou acidentes que se desenrolam no que se chama as «áreas comuns», esses pequenos ruídos abafados que o tapete de lã vermelha desbotado amortece, esses embriões de vida comunitária que se ficam sempre pelos patamares. Os habitantes de um mesmo prédio vivem a centímetros uns dos outros, separados por um simples tabique, partilham entre si os mesmos espaços repartidos ao longo dos andares, fazem os mesmos gestos ao mesmo tempo, abrir a torneira, puxar o autoclismo, acender a luz, pôr a mesa, algumas dezenas de existências simultâneas que se repetem de andar em andar, e de prédio em prédio, e de rua em rua. Barricam-se nas áreas privadas – que é assim que se chamam – e bem gostariam de que nada dali saísse, mas por muito pouco que dali deixem sair, o cão pela trela, a criança que vai ao pão, os que se despedem e os que são despedidos, é pela escada que tudo isso sai. Porque tudo o que se passa passa pela escada, tudo o que chega chega pela escada, as cartas, as participações, os móveis que os carregadores trazem ou levam, o médico chamado de urgência, o viajante que regressa de uma longa viagem. Por isso é que a escada e um lugar anónimo, frio, quase hostil. Nas casas antigas havia ainda alguns degraus de pedra, corrimões de ferro forjado, esculturas, tocheiros, às vezes uma banqueta para permitir que as pessoas idosas descansassem entre dois andares. Nos prédios modernos há elevadores de paredes cobertas de inscrições que se pretendem obscenas e escadas ditas de «urgência», de betão bruto, sujas e sonoras. Neste prédio, onde há um velho elevador quase sempre avariado, a escada é um lugar vetusto, de duvidosa limpeza, que de andar em andar se degrada segundo as convenções da respeitabilidade burguesa: passadeira de espessura dupla até ao terceiro, depois simples, e nenhuma nos dois andares de cima.
Sim, vai começar assim: entre o terceiro e o quarto andar, Rua Simon-Crubellier, número onze. Vai uma mulher de cerca de quarenta anos a subir a escada; vai vestida com uma gabardine comprida de napa e tem na cabeça uma espécie de barrete de feltro, em forma de pão de açúcar, um pouco a ideia que fazemos de um chapéu de duende, aos quadrados vermelhos e cinzentos. Um grande saco de tela escura, um daqueles sacos usados para viagens de um dia, pendendo-lhe do ombro direito. Tem um lençinho de cambraia atado a um dos anéis de metal cromado que ligam o saco à alça. Três motivos estampados como que au pochoir repetem-se regularmente ao longo de toda a superfície do saco: um grande relógio de pêndulo, um pão grande cortado ao meio e uma espécie de recipiente de cobre sem asas.
A mulher está a olhar para uma planta que segura na mão esquerda. É uma simples folha de papel cujos vincos ainda visíveis atestam que foi dobrada em quatro, e que está agarrada por um clip a um espesso volume policopiado: o regulamento do condomínio respeitante ao apartamento que a mulher vai visitar. A verdade é que na folha foram esboçadas, não uma, mas três plantas: a primeira, ao alto e à direita, permite localizar o prédio, quase a meio da Rua Simon-Crubellier, que divide obliquamente o quadrilátero formado, no Bairro da Plaine Monceau, no XVIIarrondissement, pelas Ruas Médéric, Jadin, de Chazelles e Léon Jost; a segunda, ao alto e à esquerda, é um planta em corte do prédio, indicando esquematicamente a disposição dos apartamentos e especificando o nome de alguns ocupantes: a senhora Nochère, porteira; senhora de Beaumont, segundo direito; Bartlebooth, terceiro esquerdo; Rémi Rorschash, produtor de televisão, quarto esquerdo; Doutor Dinteville, sexto esquerdo; e também o apartamento vago, no sexto direito, que foi ocupado até à morte por Gaspard Winckler, artesão; a terceira planta, na metade inferior da folha, é a do apartamento de Winckler: três divisões a dar para a rua, uma cozinha e uma retrete viradas para o pátio, uma arrecadação sem janela.
A mulher tem na mão direita um volumoso molho de chaves, por certo as de todos os apartamentos que visitou durante o dia; várias estão penduradas em porta-chaves de fantasia: uma garrafa-miniatura de Marie Brizard, um tee de golfe e uma vespa, um dominó representando um duplo-seis e uma ficha de plástico, octogonal, com uma flor de tuberosa embutida.»
(…)
“A vida – Modo de usar”, Georges Perec (Tradução de Pedro Tamen, Ed. Presença, 1989)[Uma escolha de Luís Filipe Nunes]